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MEU BICHO-PAPÃO

MEU BICHO-PAPÃO


É verdadeiramente uma bênção nascer e passar a infância numa fazenda. Foi o que aconteceu comigo. Cresci junto ao fogão de lenha, esperando os biscoitos que a mamãe fazia; andei pelos imensos terreiros cobertos de folhas secas das mangueiras, dos flamboyants e dos eucaliptos; corri pela enxurrada que descia o morro, nas pequenas estradas que tangenciavam a porteira; voei pelas encostas de mato nas tardes quentes de verão, empinando pipas, caçando passarinhos, em direção ao córrego de águas frias e cristalinas.

É verdadeiramente uma bênção. E dentre as milhares fatias de felicidade que vivi, uma sempre volta à mente, revivendo aquele tempo mágico, inigualável: era o momento das histórias que os mais velhos contavam depois da ceia. Era como se ligasse uma enorme TV num filme de terror. A sombra da noite fazia contornos medonhos nas montanhas, despertando gigantes adormecidos; balançava as copas das árvores, sacudindo os negros macacos de olhos de fogo; dava vida à cerca de pau-a-pique que descia até o mangueiro, como uma fila de zumbis que ia e voltava de acordo com a intensidade do medo das crianças. Os enredos eram diversificados e criavam, em cada pequena mente, um bicho-papão: lobisomem, vampiro, diabo, cobra-de-asa, mula-sem-cabeça... Todos morriam de medo e se apertavam no chão e nos pequenos tamboretes ao lado da varanda. O sono que esperasse, pacientemente, pelo término da sessão.

Interessante é que o meu bicho-papão era um pouco diferente. Não nasceu por entre os relatos macabros de assombrações, não correu pelas costas num arrepio repentino pela aproximação de um fantasma à meia-noite. Surgiu das conversas do meu pai com os demais fazendeiros da região em plena luz do dia. Vez ou outra, o velho recebia os conhecidos vizinhos que apeavam dos cavalos e adentravam a sala para tomar um gole de café. Eu me apoiava entre as pernas do meu pai e ouvia os reclames do tempo quente, da demora das chuvas e de um terrível perigo que os ameaçava. Um enorme animal de feições desconhecidas, de garras afiadas e poderosas mandíbulas que viria, em pouco tempo, comer as suas terras, criações, plantações e, quem sabe, as famílias. Sua chegada era inevitável, questão de poucos anos, ou meses talvez. Ninguém iria escapar, como se fosse uma condenação dos Céus, um castigo de Deus. E meu pequeno coração acelerava diante daqueles rostos preocupados, daquelas rugas que cresciam, do suor que corria pelos rostos.

As visitas iam embora, meu pai voltava ao trabalho, mas eu não me desvencilhava daquele demônio que parecia estar sempre chegando, ameaçadoramente, pelos fundos da casa. Podia ver sua língua cuspindo fogo e sua boca descomunal comendo a plantação de cana-de-açúcar, já com os olhos no mangueiro onde os porcos grunhiam apavorados. Sentia o chão tremer sob suas patas e evitava olhar pela janela para não encarar minha verdade. Sinto vergonha em dizer, mas vocês entendem, são coisas de criança... o meu bicho-papão era a Reforma Agrária! Só depois de algum tempo deixei de temê-lo, mas de todos era o bicho-papão que realmente deveria existir.

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