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O Anjo

O Anjo

Eu, igual a muitos, evito acompanhar os noticiários da TV, já que eles se constroem da desgraça, da dor e do sofrimento do ser humano. No entanto, ontem à noite, não pude desviar meu olhar de uma cena: quatro indivíduos disputando avidamente um guarda-chuva nas proximidades de um beco, em uma metrópole brasileira. E olha que não estava chovendo. A estranheza do fato prendeu-me a atenção.
Na verdade, o local era uma das inúmeras cracolândias, o pior submundo humano da atualidade. Ali, nossos irmãos abandonados pela sorte fazem uso dos restos, da pior parte, daquilo que sobra do feitio para a obtenção da cocaína: o crack. E pasmem! O guarda-chuva serve para se esconderem do anjo. Eu explico: quando surge entre os casebres uma criança, alguém logo grita “olha o anjo”, e os cachimbos são abaixados, as costas viradas e o guarda-chuva se abre e se inclina para não revelar àquele pequeno ser a atividade degradante e suicida do usuário.
É uma atitude intrigante, difícil de ser entendida. E não é apenas mais uma paranoia. Necessito de ajuda para uma boa análise, por isso compartilho o fato com vocês. Esconder-se detrás daquele pano preto é um ato de vergonha, de desprezo a si mesmo, um fracasso que deve ser oculto das crianças? Ou será um ato de respeito, de educação aos filhos, uma maneira de mostrar o certo e o errado, mesmo experimentando imensa tragédia? Será que alguém, no mais baixo degrau possível, ainda fala de ética?
Ocultar-se das crianças seria o mesmo que dizer a elas “fracassamos, mas não façam o mesmo que nós; há um caminho melhor para vocês em outra direção”. Se essa segunda hipótese for a verdadeira, se o “anjo” ainda é preservado, há uma esperança, há uma luz no fim do beco. Vejo voltar à tona a atitude paternal e secular de proteção à prole, mas vejo também um lampejo de razão fluir por entre os detritos de uma desabada esperança. Eu que já estava descrente com a humanidade frente à epidemia do crack, volto a ouvir Rousseau que dizia “O homem é bom por natureza. É a sociedade que o corrompe”. Volto a acreditar no futuro. Quem sabe esse anjo, hoje ainda protegido, possa fazer seu destino e levar a humanidade consigo pelo caminho do bem, da paz e da ventura. Que esse Anjo nos proteja!

Miguel Patrício, professor, escritor e radialista.

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