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Miguel Patrício -

UMA CRUZ NA BEIRA DA ESTRADA

Escrever não é tarefa fácil como muitos imaginam. É uma luta constante, cheia de percalços, de idas e vindas, de histórias que envolvem a história central. Certa vez, impulsionado pelo desejo de terminar um romance, resolvi aproveitar alguns dias de férias e me afastar do agito da cidade, dos compromissos, das pessoas e me embrenhar na fazenda de um amigo em busca de paz e tranquilidade, ambiente propício para o cultivo das palavras. Escolhi me estabelecer em um barraco situado a boa distância da sede. O lugar não tinha energia elétrica, mas era perfeito, rodeado de árvores e cortado pelas águas claras de um ribeiro. E principalmente longe de tudo e de todos. Ali a inspiração, anunciada pelo canto dos pássaros, chegava e corria junto ao vento roçando as folhas verdes da mata; cavalgava as borboletas e brilhava sua nudez nas frestas cintilantes do sol. Tudo que eu queria; mais que eu sonhava.

Cheguei ainda de manhã. Respirei o perfume do ar, estudei o ambiente, estiquei uma rede e abri o caderno. A caneta trabalhou como nunca em toda minha vida. Vieram a refeição, mais lotes de inspirações e o fim da tarde. Resolvi, nesse momento, seguir uma pequena trilha que chegava à casa pelo lado oposto da sede, trabalho de reconhecimento importante para a sequência dos dias. O estreito caminho me levou até a estrada principal. Tudo bem até aí, a não ser a descoberta de uma cruz fincada no barranco, com os braços voltados na direção de minha atual moradia. Não costumo me sugestionar pelo sobrenatural e escorei-me na madeira já puída, até arrisquei um rápido diálogo com o dono. As nuvens que acompanhavam o sol, antes amarelas, conseguiram para si um tom laranja, que logo depois se transformou em rubro. Era hora de voltar. Cheguei ao local, empurrei a rústica porta, entrei e acendi uma vela no canto da pequena mesa. Voltei com a cruz no pensamento e a coragem que, na verdade, nunca foi muito grande.

A noite e a solidão em lugares ermos costumam aprontar peripécias, aprendi naquela ocasião. Após reler o último capítulo escrito à tarde, estendi o colchão em um dos cômodos do barraco, deitei-me, apaguei a vela e fiz uma oração. Os minutos passaram, rolei na cama improvisada e não dormi. Vez em quando a cruz fazia brotar sua imagem no escuro do quarto. No instante em que as águas do riacho diminuíram a pressa e mudaram o tom de seu canto, ouvi passos do lado de fora, rente à parede. Rápidos como se perseguissem ou fossem perseguidos por alguém ou alguma coisa. Passos de animais, humanos ou inumanos? Era difícil dizer. Liguei a lanterna avisando de minha presença. Os rumores se distanciaram, mas logo voltaram a assombrar, agora mais fortes, do lado de meu travesseiro. Fantasma não era, pois algum já poderia ter atravessado a parede. Lembrei-me novamente da cruz, levantei-me e acendi a vela. A claridade, mesmo pequena, espalhou o barulho e ajuntou a coragem. Passei a distinguir melhor os sons que a noite trazia para mim: a carreira das águas, o coaxar dos sapos, o chirriar dos grilos, o piado das aves noturnas, o farfalhar dos morcegos... e os passos apressados de alguém ou alguma coisa que voltou e parecia agora estar dentro do barraco, no outro cômodo.

Nesse momento pensei que a cruz fincada na estrada fosse de alguém que morava ali e poderia estar zangado com a invasão de seu domicílio. Liguei novamente a lanterna e espiei à distância o interior do aposento ao lado. Duas ratazanas deste tamanho disputavam espaços debaixo de alguns troncos de madeira que sustentavam sacas de arroz. Não era fantasmas, zumbis, vampiros, lobisomens ou donos de cruzes; eram simplesmente ratazanas, mas o meu medo não quis saber disso. No outro dia cedo, ajuntei meus pertences e parti de volta à cidade. Aquela cruz na beira da estrada ainda me acompanhou por vários dias seguidos. O romance que por lá não pude escrever, hoje está pronto, mas como viram não foi uma empreitada simples. Escrever não é tarefa fácil como muitos imaginam.

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