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Miguel Patrício -

INDECISÃO

Uma bicicleta desce velozmente a ladeira. Parece nem tocar o chão. A pressa que a empurra é do tipo impaciente. Seu condutor, agachado, olhos quase fechados devido à presença inoportuna de pequenos insetos que atravessam displicentemente o caminho, perfura o vento com o nariz como se se transportasse para outra dimensão, vencendo o espaço que o separa de seu lar. É sábado à tarde, fim de expediente. Tem finalmente, e ainda, os últimos claros do dia, a noite inteira e todo o domingo para o seu descanso e afazeres... como direi? Domésticos. O sol acompanha a corrida.

De repente, não mais que de repente, lança-se ao ar um boné. Cansado de permanecer estático no pequeno espaço reservado a ele, tenta um voo modesto, mas que com sorte pode alcançar o vácuo de uma revoada e viver, por alguns momentos, a emoção de vencer os céus, reservada apenas aos pássaros e aos aviões. Quantas tardes, encolhido no varal, viu passar sobre seu desejo esses objetos alados. A ninguém é proibido sonhar, mas não é desta vez. Cai, mistura-se à poeira do chão e rola para o barranco, batendo-se contra os pequenos arbustos onde afinal se enrosca. O sol vê o ocorrido.

E o condutor? Tenta diminuir a marcha que só termina quando a estrada toma jeito, endireita o corpo e se apruma. Ele para, põe o pé esquerdo no chão, passa as mãos nos cabelos já ralos pela ação do tempo e olha para trás. Onde está? A cor vermelha do time de seu coração aponta o local. Mas ficou tão longe... volta ou não volta? Olha o relógio e já começou a decisão do campeonato. A TV não espera. Mede a distância e o tempo numa rápida e imprecisa equação matemática. O resultado ainda não foi totalmente decodificado quando sente nos lábios o beijo mais demorado da esposa nos fins de semana. Volta ou não volta? Já está atrasado para atirar a flecha no cacique Pena Torta, de quatro anos de idade. Sabe que tem de buscar o leite para o mais pequeno, e ele ainda não aprendeu esperar. Uma gota de suor rola até o olho e é enxugada com a barra da camisa. Foi mais um momento perdido. Se tivesse seguido, já estaria quase chegando, quase tocando a orelha felpuda de seu cão que o espera sempre na soleira da porta, quase abrindo a geladeira e tomando para si a cerveja gelada, seu merecido prêmio por mais uma semana de bom pai e bom marido. Volta ou não volta?

A dúvida persiste enquanto os companheiros que deixara para trás passam sorrindo. Não pode ficar ali parado tanto tempo assim. Desce da bicicleta, pois, se resolve voltar, ladeira acima é melhor a pé. E o sol? Pardo pela tarde, assiste àquele impasse; deixa passar uma nuvem e se prende à curiosidade: volta ou não volta? O tempo segue. O ilustre espectador se abaixa um pouco mais. O homem nem imagina que está sendo observado e continua pensativo, sem saber o que fazer. O sol toca o horizonte e aumenta a sombra da indecisão. Finalmente se esconde no infinito e vai dormir.

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